Disciplina - Física

Física

07/02/2017

Em busca do bóson perdido...

Em busca do bóson perdido: o charme de uma partícula


Por João Cortese
“Elementar” se diz em ao menos dois sentidos na língua portuguesa: aquilo que é simples, fácil; e aquilo que é fundamental por não possuir estrutura, sendo um componente de algo complexo. O famigerado Bóson de Higgs é um candidato à segunda categoria, sendo considerado no Modelo Padrão da física de partículas como uma das “partículas elementares” – e a última a ser descoberta, em 2012.

Muito mais “elementar” – no sentido de acessível – do que tal partícula foi a conferência proferida pelo professor Renato Higa, especialista em interações nucleares, num sábado do mês de dezembro último. O evento, na Biblioteca Mário de Andrade, fez parte do Física para Todos – série de palestras promovidas pelo Instituto de Física da USP.

A fim de apresentar aquela que foi chamada a “partícula de Deus”, e que rendeu o prêmio Nobel de Física de 2013 a François Englert e a Peter W. Higgs, o professor Higa começou lembrando a ordem de grandeza na qual ela pode ser encontrada.

Se uma cadeira é da ordem de 1 metro, o tamanho da Terra (sempre em metros) é obtido por uma cifra com 6 zeros a mais; o do Sol, acrescentando-se 8 zeros; a Via Láctea é expressa por um número com 21 zeros a mais; e os limites do universo, por um número de aproximadamente 26 zeros. O professor Higa soube explicar bem a diferença da ordem de grandeza entre uma cadeira e a Terra: “é o necessário para multiplicar o dinheiro do meu bolso e transformá-lo naquele do ex-governador do Rio”, disse, referindo-se a um evento ocorrido naquela semana.

Quanto ao reino do muito pequeno, o professor Higa lembrou que um átomo é expresso, em metros, por um número com 10 casas decimais após a vírgula; quanto ao núcleo atômico, sua cifra começa em 15 casas decimais após a vírgula. É nesta escala que, desde os anos 1960, a célebre partícula chamada a partir do nome de Peter Higgs era uma candidata a fazer sua aparição.

Decerto tal encontro não se daria no meio da rua – a possibilidade era que o Bóson desse as caras em um contexto muito peculiar: um acelerador de partículas.
Com 27 km de circunferência, o acelerador LHC, do laboratório CERN, foi o lugar no qual se deu o rendez-vous. Quem se perguntar o porquê de tal dimensão, deve lembrar-se que produzir um bóson não é tarefa simples. Em elevadas energias, este surge por meio de colisões de glúons e de quarks (os integrantes dos prótons), e a uma taxa muito baixa: uma única partícula surge a cada 5 bilhões de colisões.

Se a busca do Graal poderia parecer simples ao lado de tal empreitada literalmente internacional, cabe lembrar a razão de tal caça à partícula (que chegou a render um livro intitulado The Higgs hunter’s guide, em 1989). A física atual trabalha com a hipótese de quatro forças fundamentais no universo: a força gravitacional, a força eletromagnética e duas forças pouco percebidas no nosso cotidiano, mas bastante presentes no mundo sub-atômico, chamadas fraca e forte. Uma das maiores buscas da física contemporânea é unificar tais forças, assim como Newton unificou os fenômenos mecânicos e gravitacionais e Maxwell os eletromagnéticos.

Duas dessas forças, a interação fraca e a força eletromagnética, já foram integradas. Mas a força fraca vem de uma troca entre duas partículas massivas (bósons W e bósons Z). Por outro lado, o eletromagnetismo é uma troca entre fótons, que não possuem massa. Como conciliar isso? A questão nos leva a outra, ainda mais elementar (no segundo sentido do termo): o que faz as partículas terem massa?

Uma partícula elementar é uma partícula sem estrutura – ou seja, ela não tem “partes”. Se em um momento da História o átomo foi considerado uma partícula elementar, seu próprio nome significando aquilo que não pode ser dividido, desde o século 19 a física revelou diversas partículas que o constituem.

Exemplos de partículas elementares são o elétron e o fóton: elas não podem ser divididas em outras partículas. No Modelo Padrão da física, as partículas elementares são hoje divididas em partículas de matéria e partículas de força.

As partículas de matéria são os férmions, dos quais seis tipos são quarks, e outros seis tipos são leptons. Especificações ulteriores decorrem, como a existência de seis poéticos “sabores” de quarks: up, down strange, charm, bottom e top. Mas não é aí que encontramos nosso “charmoso” bóson.∗

Quanto às partículas de força, elas são na verdade campos de força: trata-se do glúon, do fóton, do Bóson Z e do Bóson W.
Mas o retrato de família não estava completo, pois faltava nosso personagem principal aqui: o Bóson de Higgs. Em 1964, Peter Higgs propôs a existência de um campo, cada partícula do qual é um Bóson de Higgs que possui uma propriedade muito peculiar: gerar massa.

Tal afirmação pode parecer um contrassenso absoluto. Comecemos lembrando que massa não é o mesmo que peso: um lutador de sumô pode ser mais facilmente levantado na lua do que num estádio no Japão. A massa é, portanto, uma das propriedades que atribuímos à matéria, e o Bóson de Higgs revelou que ela é ainda mais complexa do que pensávamos. Colocado numa linguagem filosófica: a massa não é uma propriedade intrínseca das partículas, mas uma propriedade relacional – ela é o resultado da interação destas com o Campo de Higgs. O processo pelo qual isso se dá, o Mecanismo de Higgs, é de natureza complexa, e envolve uma quebra espontânea de simetria, outro conceito-chave na física contemporânea.

O prof. Higa propôs que pensássemos num chapéu mexicano: se uma pequena bola é colocada no seu topo, e se perturbamos o equilíbrio desta, ela cairá para algum dos lados, estabilizando-se na aba do chapéu. Mas para qual lado ela cairá? Algo análogo ocorre com a quebra de simetria na física de partículas.

A detecção do Bóson de Higgs é ainda mais complexa pelo fato de que ele se assemelha muito ao vácuo – ele possui carga elétrica nula, assim como outras “cargas” quânticas nulas. Encontrá-lo, propôs o prof. Higa, é tão difícil quanto identificar um urso polar no meio de uma tempestade de neve no Polo Norte.

O célebre físico Richard Feynman, numa palestra dos anos 1960, indicava a ambição da sua disciplina em relação à explicação da constituição do universo:

“Antes de mais nada, existe matéria – e, por incrível que pareça, toda matéria é igual. A matéria de que são feitas as estrelas é a mesma que temos aqui na Terra”.

Entretanto, estamos ainda longe de poder dizer em coro com Sherlock Holmes a Watson que a questão é “elementar”: as partículas do Modelo Padrão contam por somente 5% da energia total do universo. Este modelo deverá ser ainda integrado a uma explicação da matéria escura e da energia escura, por exemplo.

O Bóson de Higgs não existe in natura hoje, e nem pode ser facilmente produzido. Mas sua fecundidade não pode ser repreendida. Além de um papel fundamental na constituição do Modelo Padrão, vale mencionar que ele auxiliou mesmo a nomear um ser vivo – também raro, mas não do período do Big Bang, e sim da Era do Gelo: o Bisão de Higgs.

Do bóson ao bisão, o nome de uma pessoa perpassa tais epopeias em busca de algo perdido no tempo, e não é o de Proust: oito dias após a descoberta da “sua” partícula no LHC, Peter Higgs proferiu uma palestra cujo título dava o tom desta longa história: Minha vida como um Bóson. A história das partículas, assim como a dos homens, está longe de ser elementar, mais uma coisa é certa: elas se entrelaçam.

João Cortese é graduado em Ciências Moleculares, tem mestrado em Filosofia da Ciência e é doutorando em Filosofia pela USP e pela Université de Paris 7.

* Além de possuir um ótimo título, o livro de Maria Cristina Batoni Abdalla é indispensável aos leitores interessados no tema da física de partículas por sua clareza e profundidade: O discreto charme das partículas elementares. São Paulo: UNESP, 2006.

Esta noticia foi publicada em 18/01/2017 no site http://cultura.estadao.com.br/. Todas as informações contidas são responsabilidade do autor.
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