Física
24/12/2007
Singularidade exposta
Poucos segredos no Universo são tão bem guardados quanto o interior de um buraco negro. O horizonte de eventos – como é conhecida sua região fronteiriça, a partir da qual a força gravitacional é tão imensa que nada pode escapar – mantém escondida a chamada singularidade, um ponto no espaço-tempo no qual as leis conhecidas da física não valem.
Um estudo realizado por dois brasileiros, George Matsas, professor do Instituto de Física Teórica (IFT) da Universidade Estadual Paulista (Unesp), e o doutorando André da Silva, sugere a possibilidade de se “desnudar” o centro de um buraco negro, desfazendo-se o horizonte de eventos por meio de um processo da mecânica quântica conhecido por tunelamento.
O artigo foi publicado na edição de novembro da Physical Review Letters e motivou uma reportagem na revista Nature, por contradizer a hipótese da “censura cósmica”, conjecturada em 1969 pelo físico inglês Roger Penrose, segundo a qual não seria possível existir singularidades “nuas”, isto é, não revestidas pelo horizonte de eventos.
“A relatividade geral não tem elementos para desvendar a estrutura de uma singularidade. Mas acreditamos que, em uma futura teoria da gravitação quântica, a singularidade nua não será problemática”, disse Matsas à Agência FAPESP.
Segundo o cientista, a singularidade é uma região com densidade tendendo ao infinito – com massa finita e volume próximo a zero – que concentra toda a energia do buraco negro. “Nessas regiões, nossos conceitos de tempo e espaço não se aplicam. Desvendar a natureza da singularidade poderia levar a uma quebra de paradigma, revolucionando esses conceitos”, explicou.
No entanto, segundo o físico, ninguém sabe ao certo as conseqüências de se “desnudar” a singularidade. “O horizonte de eventos protege o resto do Universo de ser contaminado pela singularidade. Segundo a relatividade geral, ao se expor uma singularidade parte do Universo pode sofrer perturbações imprevisíveis”, afirmou.
De acordo com o professor do IFT da Unesp, a conjectura de Penrose propõe que o próprio Universo teria encontrado no horizonte de eventos uma forma para se proteger da imprevisibilidade inerente das singularidades, impedindo sua exposição.
“Podemos dizer que a conjectura postulada por Penrose realmente ‘censura’ a obscenidade de uma singularidade nua. O Universo teria nos protegido de vislumbrar o impensável”, disse.
Mas a singularidade só seria “censurada” dentro da relatividade geral. “Acreditamos que ela poderia ser desvendada em uma teoria da gravitação quântica, que levaria em conta tanto ingredientes quânticos como da relatividade. O problema é que ainda não temos essa teoria completa”, destacou.
Chute com efeito
Matsas conta que no estudo foi utilizada uma teoria semiclássica, com aplicação de ingredientes da mecânica quântica e da teoria da relatividade geral a fim de saber se existe um mecanismo quântico que possa gerar singularidades nuas na natureza.
“Sabe-se que um buraco negro não pode ter mais rotação do que um certo limite. Se isso ocorrer, o horizonte de eventos desaparece e a singularidade passa a ficar exposta. O problema era saber como um buraco negro poderia rodar muito mais rápido”, disse Matsas.
Segundo os cientistas, isso poderia ser feito por uma partícula lançada tangencialmente no buraco negro que – de modo similar a uma bola chutada “com efeito” – aumentasse a rotação do buraco ao ser absorvida. Mas, no contexto da relatividade geral, isso ainda não seria suficiente para rodar o buraco com velocidade capaz de expor a singularidade.
“Por conta disso, levamos em consideração o efeito quântico do tunelamento. Com ele, uma partícula lançada tangencialmente, mas com muito pouca energia, seria capaz de ser absorvida ao atingir o horizonte de eventos, rotacionando o buraco negro além do limite que pode suportar, expondo, em conseqüência, sua singularidade”, disse.
Matsas explica que, de acordo com a mecância quântica, as partículas quânticas têm a estranha propriedade de “tunelar” por meio de barreiras que, de acordo com a mecânica clássica, não teriam energia suficiente para suplantar.
“Nossa idéia é que essa partícula tunelaria buraco adentro por um potencial gravitacional. A probablidade é muito pequena, por isso ser improvável para corpos macroscópicos, mas nosso problema é conceitual. Em princípio calculamos a propriedade de tunelamento e concluímos que ela é diferente de zero. Dentro de uma teoria da gravitação quântica, não há por que não acreditar que singularidades nuas não se formassem”, afirmou o físico.
Mas, para ter certeza de que as singularidades nuas podem ser formadas, será preciso dispor de uma teoria completa da gravitação quântica, adverte Matsas. “Sem ela, não podemos ter certeza de que outros efeitos ainda não contemplados poderiam interferir na formação de uma singularidade nua. Por enquanto temos apenas uma evidência semiclássica”, afirmou.
Embora a teoria da gravitação quântica esteja incompleta, segundo Matsas há um híbrido teórico semiclássico bastante sólido com o qual se pode trabalhar.
“Não se espera que um avião vá à Lua. Basta que ele cumpra sua função dentro de suas limitações. Da mesma forma, uma teoria não tem obrigação de ser completa, mas de ser sólida em relação àquilo a que se presta”, ressaltou.
O artigo Overspinning a nearly extreme charged black hole via a quantum tunneling process, de George E.A. Matsas and André R. R. da Silva, pode ser lido por assinantes da Physical Review Letters em http://prl.aps.org.
Por Fábio de Castro
Fonte: Agência FAPESP